"Se chegar nesse ponto, quero que me você mate. É uma ordem. Não serei executado por propaganda para meu filho e o povo americano me ver na porra do YouTube pelo resto de suas vidas.", disse Benjamin Asher, presidente dos Estados Unidos para o agente Mike Banning, no filme London Has Fallen (Invasão a Londres, 2016). Assisti isso no dia anterior ao assassinato - na vida real - do embaixador russo Andrey Karlov, diante das câmeras, numa galeria de arte. E a vida imitou a arte. A morte do embaixador está no YouTube para seu filho e esposa verem para sempre. No filme, a situação era menos bizarra, pois não foi a imprensa ocidental que publicou o vídeo na internet, mas sim os próprios terroristas (que no final não conseguiram fazer isso).
A prática comum de virar notícia como uma forma de ganhar espaço na mídia - como fazem empresas e políticos por meio de seus assessores de imprensa - não pode ser concedida a grupos criminosos. Uma coisa é Donald Trump virar manchete ou ser entrevistado por certas declarações polêmicas (as quais ele sabe que as pessoas gostam de ouvir) - como ele mesmo relatou em seu livro América Debilitada (2016). Outra coisa é sequestrar e/ou assassinar para divulgar uma gangue de criminosos e suas intenções políticas, como fizeram aqui no Brasil membros do "crime organizado"[1] e como fez o assassino do embaixador.
Ao saber que o terror islâmico usa a mídia internacional - buscando agir em grandes cidades com alta densidade de jornalistas - percebemos um dilema entre o direito à informação do público e a ética profissional da imprensa. Como um jornalista deveria lidar com um atentado que ele sabe que foi perpetrado com o objetivo maior de ser divulgado na imprensa. O que fazer ao saber que pessoas foram assassinadas apenas para que o fato fosse publicado? E o que pensar sobre a imagem das vítimas, como foi o caso do Andrey Karlov? Acredito que esta última questão seja a última coisa que muitos profissionais da mídia preocupam-se, e é justamente nesse ponto em que falhamos como civilização.
A prática ética de proteger a imagem das pessoas em momentos de fragilidade equipara-se - em meu entendimento - ao direito à privacidade. É pressuposto que nenhum indivíduo deseja exibir-se publicamente sendo espancado, sendo assassinado ou tendo seu cadáver exibido de modo sensacionalista. A curiosidade coletiva dos telespectadores - assim como as intenções de lucro da imprensa - é um sentimento inferior demais se comparado com a preservação da honra e da imagem individual, e ferir esse princípio ético é uma grande falta de respeito à vítima e sua família e às nossas - pressupostas - intenções de crescer ou de pelo menos não decair ainda mais como uma sociedade digna.
Proteger a imagem das pessoas não fere o direito à informação, que pode ser fornecida sem a necessidade de vídeos de violência e morte, os quais - esses sim - são tradicionalmente passíveis de controle pela mídia, como podemos ver no código de ética brasileiro de radiodifusão, certamente com equivalentes em diversos países democráticos.
"Um terrorista matou o embaixador russo Andrey Karlov durante um discurso numa galeria de arte" é o suficiente para ser noticiado. Acredito que informar as motivações do crime - desde que seja de forma superficial - é importante para a informação, mas não é interessante publicar o nome de um eventual grupo terrorista ao qual ele estaria ligado ou divulgar nomes dos líderes do grupo. Alguns colegas poderiam afirmar que eu estaria omitindo, mas na verdade eu estou apenas recusando-me a fazer propaganda gratuita do crime. Quem precisam saber o nome usado por um grupo criminoso são as autoridades investigativas. Os consumidores de notícia não; especialmente quando é justamente essa a motivação do crime: tornar-se famoso.
Os responsáveis pela imprensa tradicional - teoricamente - já conhecem bem seus códigos de ética e a legislação que lhe cabe, sendo necessário a eles apenas um bom exercício de consciência diante dessa realidade; mas, e quanto aos criadores de conteúdo para internet? Penso que todo blogueiro (especialmente aqueles com muita audiência) deveria ter noções básicas de ética e informação. Os denominados youtubers provavelmente preocupam-se mais em ganhar mais visualizações com seus trejeitos e atuações exageradas do que em passar uma informação relevante e útil. As pessoas gostam mesmo é de bobagens.
Por isso, não sou ingênuo ao ponto de acreditar que no Brasil - um país de educação e moral em declínio [2] - algum jornalista ou blogueiro vá se interessar em adotar a ética como um guia de suas atividades. Graças à internet e ao caráter moral de seus usuários, centenas de vídeos de mortes, ameaças, assaltos, atropelamentos estão disponíveis na rede. A barbárie é digital. Você vive o pior do mundo sem precisar sair de casa. Acredito que os efeitos psicológicos na população sejam devastadores.
Uma solução?
Seria interessante - ou urgente, em nosso caso - um tipo de selo de qualidade, dado periodicamente a jornais, revistas, websites e canais (virtuais ou não) que atestariam o compromisso ético de seus responsáveis. Não poderíamos classificar isso como censura, pois ninguém está bloqueando conteúdos previamente, mas sim os qualificando, para o bem dos consumidores. Isso seria muito útil para muita gente, especialmente para os pais preocupados, já que cada vez mais as crianças e adolescentes navegam por caminhos obscuros e bastante impróprios da internet. Não precisaríamos criar uma nova lei ou deixar isso nas mãos do governo. Ele não precisa ser o único responsável pela civilidade da nação. Já possuímos leis suficientes. Elas apenas precisam funcionar.
Um grupo independente, formado por filósofos, sacerdotes, juristas e comunicadores poderia fazer isso todo ano, publicando uma lista com todos os veículos e canais relevantes que receberam o selo de qualidade. Isso não impediria ninguém de acessar as bobagens que alguns youtubers falam ou as barbaridades que alguns veículos da grande imprensa e da internet publicam, mas seria um auxílio importante, um guia, uma luz para que os consumidores de informação brasileiros possam orientar-se em meio a um mar de trevas cada dia mais sujo.
__________ [1] Em 2006, um grupo criminoso sequestrou um jornalista da rede Globo com o objetivo de obrigar a emissora a divulgar um vídeo com demandas a respeito da situação dos presídios de São Paulo. [2] Em outros artigos já denunciei como a popularização de smartphones fez com que o conteúdo disponível na internet decaísse moralmente, afetando a população brasileira inteira, e aumentando o tamanho de indivíduos pertencentes a o que chamo de ralé moral.